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terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Amor à Vida - Filosofia e Reforma Íntima no Horário Nobre

Já virou moda entre os aprendizes de cult e pseudo-filósofos falarem mal das telenovelas. É quase um chavão falar que são fúteis e influenciam negativamente à cultura brasileira. Entretanto, assim como outras jóias raras, esta última novela das oito (ou das nove) - Amor à Vida, de Wacyr Carrasco, mudou de forma marcante esse "pré-conceito".

Esta história da vida real, recheada de humor, quase pastelão, escondeu nas suas entrelinhas verdadeiras lições de vida, exemplos e contra-exemplos de condutas, reflexões sobre inúmeros tabus e conclusões inusitadas sobre a lei de causa e efeito (ou ação e reação) mostrando as consequências nefastas do mau uso do nosso livre arbítrio.

É claro que a telenovela é feita para entreter! A estória tem suas limitações - drama mexicano, enredo pobre e cenas patéticas - feitas apenas para rir, explorar a sensualidade ou promover a própria emissora. Mas isso não tira o valor da mensagem que é apresentada ao público nas subtramas. Desde a ridicularização da apologia ao sucesso até a valorização do trabalho de ambulante (vender carrocho-quente), pode-se contar mais de quinze paradigmas do nosso cotidiano que a novela trouxe à nossa reflexão e a dos milhares de brasileiros iletrados, que nunca irão ler "Reforma Íntima sem Martírio", de Ermance Dufaux, mas que entenderam que não vale a pena se vingar, pois o crime não compensou, segundo Ninho ao rever sua filha na prisão.



Aqui, fazemos questão de enumerar alguns dos paradigmas e ensinamentos que não nos escapam à memória:

  1. um casal gay de brancos, mas que adota um filho negro;
  2. a perseverança no parto normal em detrimento da comodidade da cesariana - que só foi usada em último caso;
  3. arrependimento do pai bandido na cadeia, sua resignação das consequências e a conclusão brilhante mostrando que a vida foi certeira dando um "pai bom" para ela;
  4. a compreensão da mãe superprotetora de que é necessário refletir sobre o conceito de incapacidade da filha com autismo, e o bom gesto da família ao doar parte da venda das obras de arte à instituições que cuidam de pessoas com esta deficiência.
  5. um rapaz jovem, inteligente e bonito amar uma mulher com deficiência;
  6. um rapaz jovem, inteligente e bonito amar uma mulher gorda;
  7. um rapaz jovem, inteligente e bonito amar uma mulher mais velha;
  8. o perdão da irmã (Paloma), que apesar de todas as maldades sofridas (por Félix) reconheceu seu laço familiar e o presenteou com aquilo que ele mais desejava - a presidência do hospital. Porém ele, reformado moralmente, entendeu que o seu caminho era outro;
  9. a coragem em assumir os seus erros perante toda a sociedade e buscar reparar com pedido de perdão às suas vítimas;
  10. as consequências terríveis do ciúme doente, querer manter o outro às custas de dinheiro e querer estar com o outro em troca de dinheiro.
  11. os inúmeros (e belíssimos) exemplos de personagem que souberam perder sem ressentimentos:  perder o companheiro, perder os bens, perder a liberdade, etc.;
  12. a ridicularização das mães que incentivam as filhas a se venderem, se sensualizarem e buscar a riqueza e fama pela aparência acima dos valores morais;
  13. a ridicularização das filhas sem personalidade para se opor à estas influências;
  14. a decisão de largar o noivo rico pelo namorado que ela ama de verdade;
  15. a mulher rica que se casa com o motorista e ambos aceitando o retorno do ex-marido à casa em um gesto de solidariedade à sua situação;
  16. os dois casais que superaram o ciúmes (um era ex do outro) e se tornam amigos;
  17. o questionamento da atividade de ser barriga de aluguel. 
  18. a busca incansável em saber o motivo da vingança e, mesmo depois dela ter sido concretizada, perdoar o vingador, quebrando o ciclo de ódio;
  19. o filho que, mesmo sendo rejeitado pelo pai, cuidou dele na velhice, ao invés de colocá-lo num asilo
  20. o pai conservador, que depois de muitos anos aceitou o filho gay - uma das cenas mais emocionantes da novela (até para os próprios atores).

É possível que nesse mar de aprendizado, a polêmica do beijo gay fique em segundo plano - apenas para sedimentar a igualdade de direitos independente da orientação sexual, que já passou da hora de ser oficializado pelo Estado laico brasileiro. O que até nisso o autor foi feliz, conseguiu transmitir nessa cena tão inusitada um sentimento de carinho e respeito. Isso sem contar que à todo tempo, personagens se encontravam com os outros e se perguntavam "você leu aquele livro?" ao invés de "você assistiu aquele filme?", mostrando claramente uma lacuna crucial na nossa cultura - a leitura.

Não fica dúvidas que muitos comportamentos mostrados são dificílimos de serem reproduzidos por nós mortais, e consistem em verdadeiros exemplos de superação ao orgulho, vaidade, egoísmo e preconceito. Esta novela choveu gotas de alívio psíquico ao mostrar a sociedade como ela deveria agir em diferentes situações: vencendo a ignorância e futilidade e buscando a sabedoria e aquilo que mais importa na vida - o amor. 

Por Andrea Soares e Claudio Celino



Um comentário:

  1. Excelente texto. Apesar de me colocar na trincheira dos avessos ao telenovelismo e desconhecer toda a estória, o que vocês sintetizaram me leva a supor que uma importante brecha pode ser aberta para que uma parte considerável da sociedade conservadora (Do direito consuetudinário da “América Católica”) possa experimentar o frescor interior advindo do exercício da liberdade de consciência. No passo mais a frente, ensaiar a defesa da procedência humana e democrática das leis do Estado laico. Com isso, minha única fé será ainda dialogar com uma geração defensora do livre-pensamento e do respeito às minorias – cuidarei da minha saúde até lá. :-)
    Parabéns.

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Salvador, Bahia, Brazil
Um engenheiro otimista que adora política, estuda religiões, meditação e software livre, e se preocupa com o meio ambiente.